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Carola Ponto e Vírgula

Carola Ponto e Vírgula

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Olá a todos, hoje é dia de voltar a falar de mais uma leitura. Esta foi a primeira leitura de Junho e um dos livros mais recentes na minha estante. Tem sido um dos livros mais falados nos blogues e Instagrams literários: “Demência” de Célia Correia Loureiro, editado pela Coolbooks.

Uma das razões que me fez comprar este livro (além das reviews bastante positivas) foi tratar-se de um tema bastante actual e que ganha cada vez mais preponderância na sociedade e eu fico sempre muito curioso por saber mais sobre a forma como esta realidade interfere na vida do próprio doente e de toda a família ao seu redor.

No caso da nossa história temos Letícia e Olímpia, a primeira foi vítima de violência doméstica por parte do filho da segunda, filho esse que foi morto por Letícia, um crime pelo qual foi ilibada. No entanto e com os primeiros sinais da doença de Olímpia, Letícia vê-se obrigada a regressar e a prestar assistência à sogra.

 

“Bastou aquele gemido da velha para que os três tivessem uma confirmação. Esperavam que dissesse que torcera um pé e que, por isso, não se podia deslocar até aos currais. Mas a vizinha limitava-se a não compreender que a causa da morte dos animais era a sua ausência.

— Há mais de uma semana que não vai ao curral, dona Olímpia. Não a temos visto por lá e os animais vão morrendo à fome.

— Que animais é que morreram à fome? Então eu não vou lá todos os dias? Já lá fui hoje e daqui a nada já lá vou de novo. – Olímpia expressava-se como se a injuriassem.

— Agora que caiu a noite é que lá ia, para partir um pé e ficar um mês de cama? – sibilou Zé, sem que Salomé o chamasse à razão.

De súbito, também ela pareceu impaciente, vindo-lhe à ideia a roupa que deixara estendida.

Olímpia prosseguia, irritada:

— Eu vou lá quando eu quiser, os animais são meus. Não tenho marido nem pai que me dêem ordens.

Salomé acenou ao marido. Não valia a pena, estavam a enervar a pobre mulher.

— Quer que vá consigo amanhã ao curral, para a ajudar?

— Eu não preciso de ajuda nenhuma, nunca precisei. — Pondo-se de pé, a idosa pegou na toalha e nos utensílios para bordar e voltou-lhe as costas.

Ao fechar a porta atrás de si, ainda a ouviram tartamudear:

— Agora querem ver que estou maluca?”

 

 

 

À primeira vista podíamos pensar que a história se irá cingir à doença de Olímpia e embora gire muito em torno da demência da idosa e como num dia está lúcida em relação ao que aconteceu com o filho, no dia seguinte pode muito bem achar que o seu filho é ainda uma criança, há muito mais para além disso, ou melhor, há muitas mais demências além da doença da idosa.

E foi isto que mais me surpreendeu ao longo da história e me fez pensar que provavelmente a menos doente dali (embora com um feitio bem vincado que vamos percebendo como se formou) é a menos doente ou pelos menos a que tem menos culpa da sua condição.

 

“Olímpia dava volta na cozinha, sem saber ao certo o que procurava. Abriu a gaveta onde guardava a correspondência e descobriu diversas notas, recados a si mesma, na sua letra, todos datados e com mensagens de toda a espécie. Tomar banho — 14 de out. 2008; Pagar a dívida do talho ao Zeca, 17,29 euros — 14 de out.; Telefonar a saber das miúdas — 16 de out. Compondo os óculos no rosto, de dedos trémulos leu Pôr flores na campo do Fernando — 19 de out.

Então, era verdade, Letícia tinha razão. O filho falecera e ela nem se lembrava de quando acontecera ou em que circunstâncias. Naquele momento, também ela parecia estar a morrer.”

 

 

Adorei o facto de tudo se passar numa aldeia que torna, para o bem e para o mal, todas as relações muito mais intimistas e intensas. Numa grande cidade, uma questão destas é tratada de forma muito mais fria e distante por parte da população que rodeia um caso semelhante a este.

As personagens estão muito bem construídas, nota-se a personalidade e a profundidade de cada uma e são daquelas que irei recordar por muito tempo na minha memória (talvez até o título do livro me atacar).

 

“— O meu filho, o meu filhinho — gemia Olímpia, no sofá, sofrendo a perda do filho como se fosse a primeira vez.

Depois, espreitando por debaixo do braço para a mulher que preparava o jantar, guinchou:

— O que lhe aconteceu, Amélia? Estava com a tua moça? A tua menina também morreu?

Letícia, dando-se conta de que Olímpia a tomava pela sua mãe e julgava que morrera com Fernando em algum acidente, percebeu que a mente da sogra estava retida, algures, nos primeiros tempos do seu namoro com Fernando, quando eram ambos jovens adultos. Sabendo que Olímpia esqueceria também essa conversa, não se conseguiu impedir de lhe responder, com gravidade:

— Morreu sim, morreram os dois. — Teria sido melhor assim.

— Oh, Amélia, eram tão novos. — Esforçou-se para se soerguer e sentou-se no sofá. — Anda cá, por favor, senta-te ao meu lado.

Letícia deitou um olhar ao refogado, baixou o lume e atravessou a sala para se instalar no sofá ao lado de Olímpia, cujos olhos vermelhos e inchados pousaram nela com evidente pesar:

— Mais ninguém no mundo sabe o que sentimos, mais ninguém. — Abrindo os braços, apertou-a contra o peito volumoso.”

 

 

Adorei este livro, foram 5 estrelas fáceis de dar, e acho que é um livro absolutamente essencial para todos e para todas as idades, para que não só percebamos como uma doença destas afecta o doente e todos à sua volta, mas também para podermos rever alguns dos nossos valores enquanto sociedade!

 

“Ela achou a pergunta de Gabriel cruel. Se tinha saudades do homem por quem se apaixonara? Era evidente que tinha. Sem se voltar para ele, apoiou as palmas das mãos no balcão do lava-louça e baixou a cabeça: o homem que julgava amar morreu muito antes de Fernando. Esse homem levou-a a concertos, a conhecer cidades, deu-lhe as mãos e puxou-a para baixo do braço na rua, chegou a oferecer-lhe flores, num gesto genuíno, enfrentou a mãe para casar com ela, deixou-a decidir o nome das filhas, fez amor com ela na mesa de bilhar, a meio da tarde, dividiu, os planos para a vida com ela. Desse homem sentia saudades, mas esse morreu em vida.”

 

 

Dizer que este livro foi escrito com uma maturidade enorme tendo em conta que é a estreia da autora, que foi publicado originalmente em 2011 por uma jovem (nasceu em 1989) cheia de talento e que se preocupa com as questões que realmente interessam, não tentando pintar a realidade de outra forma que não aquela que, infelizmente dói, mas que é real! Está de parabéns e espero que continue a publicar e que tenha muito sucesso.

E daí quem já leu esta maravilha? Quem é que ainda não leu mas quer muito ler? Comentem e espero que a minha opinião sirva para aumentar a curiosidade de todos. Boas leituras e até à próxima!

 

“(…) Claro que sim, os maridos haveriam sempre de levantar a mão às mulheres. Parecia-lhes natural, e conviviam bem com isso.

O que era intolerável era uma mulher o denunciar, a bandeiras despregadas, na rua. O que era impensável era uma vizinha meter-se nos assuntos de marido e mulher e ligar para as autoridades. O que era inaceitável era uma mulher — como se fosse dona dos destinos dos dois, quando devia apenas submeter-se ao marido — disparar-lhe uma saraivada de balas no couro e ser ilibada. Os casamentos morreriam, por estas bandas, se assim fosse. O que seria das mulheres quando os maridos as achassem tão ariscas que as vidas deles ficavam em risco? Morreriam solteiras, ficariam para tias. E o casamento é apenas o sacrifício que qualquer mulher deve fazer, na ideia popular, para aceder ao milagre da maternidade.”