Olá a todos, volto finalmente com mais uma publicação. Sei que não estou a publicar com muita regularidade ou consistência, mas actualmente é só com esta regularidade que consigo! Qualquer reclamação é favor escrever ali no livro de reclamações que está ao fundo do corredor.
Agora, vamos lá dar a opinião sobre a minha última leitura. Temos então um dos maiores clássicos portugueses: “Ensaio Sobre a Cegueira” do nobel da Literatura, José Saramago, edição Porto Editora.
Quem me segue, seja pelo blogue ou pelas minhas redes sociais (Facebook e Instagram — quem não seguir ou fizer “gosto” na página é um Joe Berardo!), sabe que os grandes clássicos teimam em não fazer parte da minha lista de livros lidos. Ainda assim, estou a tentar recuperar os clássicos perdidos. Comentem quais são os livros que aqui o tio TEM mesmo que ler! Para variar já divaguei que nem um animal (os animais divagam?), mas vamos lá…
O primeiro livro que li de Saramago foi “Caim” e gostei muito. Gostei da tão aclamada forma de escrever do autor e fiquei curioso por mais! É aí que entra este “Ensaio Sobra a Cegueira”. E o que dizer dele?! Bem, parte de uma ideia original onde de repente um homem está no trânsito e fica cego. Mas não é uma cegueira normal, escura, não, é uma cegueira que o deixa a ver tudo claro como se estivesse a olhar de frente para o sol.
“O novo ajuntamento de peões que está a formar-se nos passeios vê o condutor do automóvel imobilizado a esbracejar por trás do para-brisas, enquanto os carros atrás dele buzinam frenéticos. Alguns condutores já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empanado para onde não fique a estorvar o trânsito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar quando alguém, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego.
Ninguém o diria. Apreciados como neste momento é possível, apenas de relance, os olhos do homem parecem sãos, a íris apresenta-se nítida, luminosa, a esclerótica branca, compacta, como porcelana. As pálpebras arregaladas, a pele crispada da cara, as sobrancelhas de repente revoltas, tudo isso, qualquer o pode verificar, é que se descompôs pela angústia. Num movimento rápido, o que estava à vista desapareceu atrás dos punhos fechados do homem, como se ele ainda quisesse reter no interior do cérebro a última imagem recolhida, uma luz vermelha, redonda, num semáforo. Estou cego, estou cego, repetia com desespero enquanto o ajudavam a sair do carro, e as lágrimas, tornaram mais brilhantes os olhos que ele dizia estarem mortos. Isso passa, vai ver que isso passa, às vezes são nervos, disse uma mulher.”
Tudo piora quando a cegueira se alastra o que obriga o Governo e as autoridades a prender todos os “novos cegos”, isolando-os da população que ainda não foi infectada!
A partir daqui vamos acompanhando a vida de todos aqueles cegos, enquanto eles vão tentando sobreviver e adaptarem-se à sua cegueira. Claro que o resultado só podia ser um: o caos. Imaginem se de um momento para o outro perdessem a visão, não para a presumível escuridão, mas para uma claridade que nem durante a noite se apaga.
“Ao quarto dia, os malvados tornaram a aparecer. Vinham chamar ao pagamento do imposto de serviço as mulheres da segunda camarata, mas detiveram-se por um momento à porta da primeira a perguntar se as mulheres daqui já estavam restabelecidas dos assaltos eróticos da outra noite, Uma noite bem passada, sim, senhores, exclamou um deles lambendo os beiços, e outro confirmou, Estas sete valeram por catorze, é certo que uma não era grande coisa, mas no meio daquela confusão quase nem se notava, têm sorte estes gajos, se são bastante homens para elas, Melhor que não sejam, assim elas levarão mais vontade. Do fundo da camarata, a mulher do médico disse, Já não somos sete, Fugiu alguma, perguntou a rir um dos grupo, Não fugiu, morreu, Ó diabo, então vocês terão de trabalhar mais na próxima vez, Não se perdeu muito, não era grande coisa, disse a mulher do médico. Desconcertados, os mensageiros não atinaram como responder, o que tinham acabado de ouvir parecia-lhes indecente, algum deles terá mesmo chegado a pensar que no fim de contas as mulheres são todas umas cabras, que falta de respeito, falar de uma tipa nestes termos, só porque não tinha mamas no seu lugar e era fraca de nádegas.”
Temos várias personagens, vários comportamentos e por incrível que pareça, quase todos os comportamentos dos cegos (sim só dos cegos) acabam por ser compreensíveis. Não dá para evitar pensar como seria a nossa vida se, de um momento para o outro, ficássemos cegos. Eu já vejo mal, por isso, imaginem só como me sentiria numa situação destas.
Gostei, não posso dizer que não gostei, estava lá a escrita de Saramago com mais uma ideia original e muito bem pensada, trabalhada e representada, mas gostei muito mais de “Caim”, muito pelo sentido de humor aguçado nessa história. Aqui e com um acontecimento tão trágico, seria normal que o humor não estivesse muito presente.
“Como está o mundo, tinha perguntado o velho da venda preta, e a mulher do médico respondeu, não há diferença entre o fora e o dentro, entre o cá e lá, entre os poucos e os muitos, entre o que vivemos e o que teremos de viver, E as pessoas, como vão, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Vão como fantasmas, ser fantasmas deve ser isto, ter a certeza de que a vida existe, porque quatro sentidos o dizem, e não a poder ver, Há muitos carros por aí, perguntou o primeiro cego, que não pode esquecer que lhe roubaram o seu, É um cemitério.”
No Goodreads (é favor seguir lá o tio também) dei três estrelas, mas é mais um 3,5. Ainda tenho mais um livro de Saramago na minha estante, mas vou ainda estar uns meses até voltar a ler o nosso Nobel da Literatura!
E vocês já leram Saramago?! E este “Ensaio Sobre a Cegueira”, como o classificam?! Vá comentem aí e digam de vossa justiça! Muito obrigado a todos e até à próxima!
“Logo nas primeira vinte e quatro horas, disse, se era verdadeira a notícia que correu, houve centenas de casos, todos iguais, todos manifestando-se da mesma maneira, a rapidez instantânea, a ausência desconcertante de lesões, a brancura resplandecente do campo visual, nenhuma dor antes, nenhuma dor depois. No segundo dia falou-se de haver uma certa diminuição no número de novos casos, passou-se das centenas às dezenas, e isso levou o Governo a anunciar prontamente que, de acordo com as mais razoáveis perspetivas, a situação não tardaria a estar sob controlo. A partir deste ponto, salvo alguns soltos comentários que não puderam ser evitados, o relato do velho da venda preta deixará de ser seguido à letra, sendo substituído por uma reorganização do discurso oral, orientada no sentido da valorização da informação pelo uso de um correto e adequado vocabulário. É motivo desta alteração, não prevista antes, a expressão sob controlo, nada vernácula, empregada pelo narrador, a qual por pouco o ia desqualificando como relator complementar, importante, sem dúvida, pois sem ele não teríamos maneira de saber o que se passou no mundo exterior, como relator complementar, dizíamos, destes extraordinários acontecimentos, quando se sabe que a descrição de quaisquer factos só tem a ganhar com o rigor e a propriedade dos termos usados.”