Olá a todos. Hoje venho falar do livro do mês de Março no Net Book Club, “Imortalidade” de Rachel Heng, edição Bertrand Editora. A premissa do livro é simples: num futuro próximo (talvez não tão próximo assim) em que a esperança de vida é de 300 anos e a nossa personagem principal é abençoada para em conjunto com o seu marido atingir a imortalidade.
“Só para ver, qual é o problema? Fora isso que a mãe dissera quando chegaram a Nova Iorque e passaram pela clínica. Por isso, fizeram os testes. Vieram a saber que ambas tinham bons genes, genes excelentes, tão bons que eram elegíveis para todos os tipos de tratamentos subsidiados. Elas riram-se. Não era par isso que lá estavam, não, elas estavam ali pela música. A mãe para cantar, Anja para tocar violino.
Mas a ideia de viver para sempre era uma doença que ardia lentamente e que a mãe tinha apanhado a partir do momento em que tinham feito aqueles testes. Começou a viver como os americanos, deixando de comer carne e até mesmo peixe, a sua corpulência robusta diminuindo para uma magreza eficiente e controlada no ginásio. Parou de correr por causa do que isso lhe fazia aos joelhos. Finalmente, começou a cantar cada vez menos porque a avisaram sobre o coração, de como era o elo mais fraco numa composição genética imaculada. Havia também toda aquela produção excessiva de cortisol envolvida no facto de ser música. Riscos do ofício, como lhe chamavam.
A mãe tornou-se obcecada com os melhoramentos e depois com as reparações. Primeiro foi a pele, reenxertos de quinze em quinze meses, depois o sangue, fortificado por partículas microscópicas inteligentes, nanorrobôs que limpavam, reparavam e regeneravam. No dia em que lhe substituíram o coração por uma bomba sintética de alta potência, Anja praticou no violino até os dedos ficarem púrpura e em carne viva. Na clínica, observou atentamente a cara da mãe à procura de pistas de como aquilo viria a acabar.
Agora sabia, claro. Era assim. As duas neste quarto vazio e húmido, com nada, excetuando uns quantos objetos, que lhes pertencesse. Os tratamentos só eram subsidiados até uma dada altura, tornando-se cada vez mais caros quando a mãe atingiu o seu tempo de vista previsto, até não lhes restar nada. Agora, tudo o que restava era esperar.”
Até aqui tudo parece maravilhoso e a decisão seria óbvia, mas ao cruzar-se por acaso com o seu pai (que não dava sinais de vida há quase um século), Lea começa a ficar com dúvidas sobre o que fazer e toda a sua vida começa a mudar a partir dessa aproximação ao pai.
Nesta realidade onde a vida dura séculos e a imortalidade está ali ao virar da esquina, a morte acaba por ser tratada como um crime e existir um Clube do Suicídio (que por acaso é só o nome do livro na língua original) onde os membros defendem que devem viver a vida e morrer segundo os seus próprios ideais.
“A mulher começou a falar. As pessoas podem não saber que o Clube não foi sempre um grupo ativista, disse ela. Há muito tempo, era simplesmente uma coleção de longevos desiludidos que tinham decidido que estava, fartos das sessões de Manutenção, das competições de HDL, da abnegação. Organizavam espectáculos proibidos de música ao vivo, refeições tradicionais péssimas, do tipo que mais entupia as artérias, orgias irresponsáveis. Chamavam-se a si próprios o Clube do Suicídio em tom de chacota, na brincadeira.
Mas o ministério ficou preocupado. Apesar de todas as medidas novas, os números da população continuavam a cair. Não podiam permitir que houvesse pessoas que, repentinamente, já não queriam viver para sempre. Seria desastroso, o fim da dominação global americana como a conhecemos. E foi nessa altura que a campanha de difamação nasceu.
— Mas o que fazer connosco? — continuou a mulher, o cabelo a agitar-se ao vento, a sua figura franzina enquadrada pela cidade em pano de fundo, oitenta andares abaixo. — O que fazer com aqueles que não podiam punir com o castigo habitual — cortando os nossos números, tirando-nos os tratamentos de extensão?
Agarrou numa garrafa que estava no chão e começou a beber. Quando voltou a falar, a garrafa estava vazia.
— Aceleração. Acelerar para a Terceira Vaga, cobaias para a imortalidade. Substituições especiais ainda mais indestrutíveis do que as últimas. Sabiam que o último SmartBlood™ coagula em menos de um milésimo de segundo? DiamondSkin™ que irá aguentar não só a força de um carro, como a vossa irá, mas uma queda de oitenta andares?
A mulher estava em contraluz, iluminada por um sol abrasador, os olhos eram poços escuros na sombra da cara. Fez um gesto para trás dela.
— Podia saltar neste preciso momento, e eles conseguiam voltar a montar-me.
A mulher acendeu um fósforo.
— Não nos deixam escolha.
Levou o fósforo à cara e inspirou, e o solo deixou de ser a única coisa a arder.”
Com estas condicionantes todas, previa que era mais um livro, como alguns dos últimos que tenho lido, em que a premissa nos leva para um mundo estranho e com vantagens e desvantagens em relação à nossa realidade. Verdade que logo no Prelúdio escrevi a anotação “Já gostei mais disto do que o último livro todo”, mas a verdade é que a história não se desenvolveu com as surpresas, situações e problemas que uma realidade destas podia permitir.
Não me interpretem mal, gostei do livro, gostei da luta interior e exterior que a nossa Lea Kirino foi tendo ao longo da história para perceber o que ia fazer com o seu futuro e que rumo devia seguir, entre revisões periódicas, substituições de peças (qual carro na oficina) rumo à vida sem fim ou então juntar-se à ideia do Clube do Suicídio. Foi uma leitura boa, nada de especial, mas que recomendo a quem queira explorar estas realidades que, por enquanto, ainda são alternativas!
“«… Mas é difícil dizer ao certo. Depende tudo concretamente das projeções de eficiência dos recursos, que ainda não saíram», estava a dizer Jiang. Estaria ao telefone?
«Bem, sim. Mas o meu marido…» Uma segunda voz esbateu-se num murmúrio.
Lea espreitou de trás do arquivo. Jiang e Natalie estavam parados, cabeças encostadas uma à outra, junto à receção. Era natalie quem estava a falar agora, numa voz baixa e urgente que Lea não conseguia destrinçar. Enquanto falava, ia cortando o ar com as mãos. Jiang estava a assentir, lentamente, e a beliscar o queixo com o polegar e o indicador. A seguir, deu-lhe umas palmadinhas no ombro.
— Tempos excitantes — disse ele. — A Terceira Vaga. Quem sabe, talvez estejamos prestes a testemunhar um momento histórico — proclamou, al to e bom som.
Natalie sorriu. Era um sorriso arrogante e presunçoso, mas também era mais do que isso. De repente, Lea apercebeu-se do que se tratava — Jiang estava a ser deferente para com ela.
Quando entraram no gabinete de jiang, Lea cruzou os braços no peito e encostou a face ao metal frio e cinzento do arquivo. Foi então que se recordou — o marido de Natalie era um político, com uma posição importante do Ministério.
A Terceira Vaga. Era mesmo verdade.
Fechou os olhos com força, tentando expulsar da cabeça a voz de Uju, tentando aclarar os pensamentos. Não iria conseguir, percebeu. Não enquanto estivesse na Lista de Observações; não enquanto Todd continuasse a relatar os desaparecimentos estranhos dela; não depois de ter ameaçado Todd com um copo partido. E não enquanto estivesse a esconder o pai.”
O livro que ganhou a votação de Abril também já foi decidido e vai ser mais um que vou ler e dar opinião. Acho que temos tido livros que apresentam boas ideias, diferentes, mas que depois acaba por lhes faltar sempre qualquer coisa na história para os tornarem inesquecíveis. Venha lá então esse Abril…
“Talvez pudessem resolver aquilo juntos. Talvez pudessem. Lea pensou no filme da morte de Ambrose, na conversa com Anja, tudo no cartão de memória minúsculo da câmara no buraco do botão, que ainda não tinha sido enviado para GK. De que é que ela estava à espera? Porque é que ainda não o tinha enviado, porque é que ainda não se tinha ilibado a si própria para poder voltar ao normal? Todd podia voltar para casa. Ela podia voltar para o emprego.
Mas quando Lea olhou para os perfeitos olhos dourados de Todd, percebeu que não queria. Era por isso. A sua vida antiga parecia-lhe uma realidade distante, vazia, ridiculamente vazia. Não conseguia imaginar-se de volta ao gabinete dela, sentada à secretária, a conversar com clientes com dinheiro sobre riqueza que chegaria para várias vidas que eles não iriam ter. Não conseguia imaginar continuar com Todd, ir a festas cheias de spritz de vitaminas, a tagarelar sobre que treinador pessoal tinha dormido com a cliente, sussurrando sobre os números dos outros, muito baixinho, atrás das mãos em concha.
Então, o que é que queria?
A resposta veio rapidamente.”