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Carola Ponto e Vírgula

Carola Ponto e Vírgula

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Olá a todos, bem-vindos a mais uma opinião, hoje temos “Pão de Açúcar” de Afonso Reis Cabral. Este jovem escritor foi o vencedor do prémio Leya com o livro “O Meu Irmão”. Livro esse que me foi oferecido e já me valeu uma reprimenda por ainda não o ter lido.

Este “Pão de Açúcar”, editado pela D.Quixote, foi a escolha para o mês de Outubro do Net Book Club, o novo clube literário idealizado e organizado pelo blogue “a mulher que ama livros”. Sigo este blogue desde que eu próprio pensei em criar o meu blogue. Esta mulher lê que se farta (quer dizer, não se farta de certeza, mas lê muito) e o blogue dela tem sempre muitas opiniões e sugestões para todos os gostos. Se não conhecem e gostam de livros (primeiro saiam da caverna) é um blogue de paragem obrigatória.

Voltando ao livro de hoje, ele leva-nos de volta ao ano de 2006, à história de um corpo resgatado de um poço com marcas de agressões e despido da cintura para baixo, num prédio abandonado. O corpo é de Gisberta, Gi para os amigos e assassinos, transexual e sem-abrigo, vive naquele prédio abandonado uma vida já de si miserável, de droga e doente, mas que com a descoberta por parte de Rafa, a nossa personagem principal, infelizmente irá piorar muito até ao desfecho trágico que se conhece.

 

“Acho que era Janeiro, até porque a data final disto é 22 de Fevereiro às oito e meia da manhã e, apesar de agora parecerem meses, a verdade é que não se passaram sequer sete semanas até as coisas acabarem.”

 

 

 

Primeiro, falar da escrita de Afonso Reis Cabral, que para alguém tão jovem escreve com uma maturidade enorme, construindo bem as personagens, descrevendo bem os cenários e tratando cada interveniente com um cuidado enorme. Nota-se que há muito trabalho de investigação e isso aliado ao seu grande talento faz deste livro uma maravilha.

Chamar maravilha a algo tão obscuro e com tanto sofrimento envolvido parece cruel, mas quando há alguém capaz de te prender num relato sofrível destes, temos um livro espectacular. Não gosto muito de comparar livros, mas este teve o mesmo impacto em mim que o  livro “Vozes de Chernobyl”.

 

“Reconhecia nele, em dobro, a repulsa e o nojo que sentira ao encontra-la. Entretanto a minha aversão passara. Ter continuado a ajudá-la provava que afinal era mais homem do que rapaz, adulto em vez de criança, por oposição ao Nélson. E até por oposição ao Samuel, que conversava em paz com a Gi apenas por ainda não ter percebido que ela era um traveca igual aos que insultávamos em Santa Catarina.”

 

 

O sofrimento de Gi, a forma como Rafa vai lutando consigo mesmo para tentar perceber como reagir à relação que ele e uns amigos, cada um à sua maneira, acabam por desenvolver com Gisberta.

Não há nada que desculpe aquilo que estes jovens fizeram, mas aqui ficamos a saber, quase passo a passo, o que se passava na mente daqueles jovens, também eles já vítimas de uma vida nada fácil.

 

“A Gi nem se atrevia a falar mas a força dos pontapés obrigou-a a sair para não lhe caírem em cima partes da barraca.

 Depois de dizer «Não tenho para onde ir!», ignorou o grupo do Fábio e sorriu-nos, não sei se atrapalhada por nos ver envolvidos naquilo, se de alívio por esperar que a ajudássemos. A mim sorriu mais, como quem pergunta «Viu os post-its?»."

 

Um capítulo a seguir ao outro, vamos acompanhando o desenrolar da acção, sabendo já como acaba, mas não é por isso que não somos surpreendidos com algumas situações e não é por isso que sofremos menos com o cegar da tragédia final. É essa forma de despertar estes sentimentos em nós leitores que eu adoro, embora estejamos perante uma história de horror e de desprezo pelo Ser Humano.
Recomendo muito este livro. Dói, dói muito, mas também é muito bom!

 

“De certa maneira, tínhamos voltado aos primeiros dias, juntos na cave sem mais ninguém. Faltava a bicicleta, mas era mais prudente mantê-la no vão das escadas. Acto contínuo, repreendi-me por não estar apenas concentrado em alimentá-la antes de sairmos da cave.

 A massa soube-me bem. Agachei-me junto à Gi para lhe dar de comer com um garfo de plástico. Duas tentativas depois, frustrada por não abrir a boca em condições, disse-me «Desiste de mim, me deixa em paz. Eu não mereço».”

 

“O Samuel recomeçou a chorar, desta vez sem vergonha ou controlo, à frente de todos. Eles riram-se muito e eu imitei-os. A Gi reagiu ao choro doce — oásis no Pão de Açúcar —, olhando para cima com dificuldade. Procurava a cara dele e tentava levantar-se em vão. Antes de o alcançar, o olhar passou por mim sem se deter.

 Isso meteu-me tanta raiva que disse numa rajada «O Samuel conhece este traveco desde pequeno, eram muito amigos». Eu sei que devia ter ficado calado mas reconheço que senti alguma satisfação, como as pessoas que batem para ter prazer.”

 

“Empurrámos juntos sem esforço e o corpo desapareceu.

 Não descrevo o som do embate nas paredes irregulares do poço, nem como ela ficou suspensa num espigão antes de cair à água. Até aí escuro, o fundo parecia brilhar com a presença da nova habitante.

 A água ainda borbulhava quando o Nélson disse «Meu, fiz a minha parte, vou mas é para as aulas». E eu agradeci, aliviado por ficar sozinho com a Gi antes de abandonar o Pão de Açúcar.”

 

“Uma semana depois, o médico-legista concluía a autópsia. Escreveu o relatório com uma caligrafia nada notável, muito certa e bem alinhada, como se a sequência de letras fosse um código de barras. Fechou com uma frase semelhante a esta: os pulmões, para além de apresentarem os nódulos característicos da bactéria M. tuberculosis, denotam aspiração volumosa de água.

 Ou seja, ainda que os rapazes se tenham convencido do contrário, Gisberta Salce Júnior estava viva quando a atiraram ao poço.”