Olá a todos! Este livro foi uma escolha dos seguidores do blogue no Instagram para o mês de Fevereiro e era um livro que apareceu cá em casa sabe-se lá como… sei que fui eu que o comprei, o que já não é mau! Talvez por ser mais um escritor português… na minha lista de razões para comprar livros, é suficiente!
“Princípio de Karenina” de Afonso Cruz, editado em 2018 pela Companhia das Letras. É um livro que é basicamente (que termo redutor) uma carta de um pai para a sua filha, relatando tudo da sua vida, desde que era ele uma criança até aos últimos dias da sua vida.
“A minha mãe gostou sempre da deformidade com que nasci. Durante muito tempo não consegui perceber o motivo, mas seria algo que marcaria toda a minha vida. A imperfeição. A imperfeição salvar-me-ia com igual intensidade e na mesma medida com que me faria sofrer.”
Este livro é muito pequeno, não chega sequer às duzentas páginas, mas é uma viagem espectacular pela vida deste homem, com uma forma de escrever de fazer inveja, com um vocabulário rico e variado, com uma clareza enorme. É uma forma de escrever que nos dá gosto saborear cada página.
A forma como este homem vai relatando a história da sua vida, limitada em muitas vertentes e todas as peripécias que daí surgiram, fez-me sentir como que uma pequena criança ao colo da avó enquanto ela nos conta uma história infantil. Foi muito bom e rápido de se ler. Quem ainda não leu nada de Afonso Cruz, vão por mim, não se arrependem certamente!
“O meu pai, sempre imerso nos seus estudos, vivia alheado da família, sem ligar a ninguém. Eu chegava a casa, dizia boa tarde, ele não respondia, continuava debruçado sobre a montanha de papéis, com os olhos encostados à secretária, ao fundo da sala, de costas voltadas para a família. A minha mãe dizia «o jantar está pronto», ele não respondia, por vezes fazia um sinal com o braço, jantava depois, quando já todos tinham acabado. Outras vezes, esquecia-se de comer, adormecia em cima da sua montanha de papéis, acordava de manhã já sentado à secretária, a postos para retomar o trabalho. Era uma rotina a que já ninguém ligava. Às vezes passavam-se dias sem haver qualquer interacção connosco ou com os trabalhadores da herdade. Pai, senhor, querido, patrão, quem quer que o chamasse recebia um pesado silêncio como resposta, a menos que, por algum motivo, se sentisse com predisposição para comunicar, para trocar umas palavras razoavelmente amáveis para os seus padrões. Nesse caso, erguia-se de trás dos seus papéis exibindo um olhar agudo e perguntava quem tinha morrido: Ninguém? Vá à sua vida.
Daquela vez, tinha efectivamente morrido alguém. Tinha morrido o meu pai e ninguém notara. O cheiro vinha do corpo em decomposição.
Estrava atrás dos seus papéis. Foi a criada que, enlouquecida com o cheiro, teve a ousadia de o acordar para lhe comunicar o problema. O meu pai respondeu como tantas vezes fazia: com um pesado silêncio.”
Gostei muito da história, mas fiquei rendido à escrita. Quem escreve assim, não é gago da caneta, maravilha! Fiquei fã e para mal da minha carteira e do meu objectivo de controlar as minhas compras em relação aos livros este ano, é um autor que me deixou curioso por ler mais livros seus.
Recomendo muito este “Princípio de Karenina”, para mim todo o livro era um grande excerto que devia por aqui para vocês verem a maravilha que é este livro, o único senão é ser demasiado curto, mas isso seria verdade mesmo que tivesse 400 páginas.
“Como poderia eu, rapaz relativamente deformado, sonhar um dia casar-me com a Fernanda da farmácia, quando o meu rival era o ápice do cânone grego, uma pessoa meio dicionário mitológico, meio recordista dos cento e dez metros barreiras? Mas, na verdade, o segredo é incorpóreo, não se vê. A realidade pode ser muito dura, mas os sonhos dão boas almofadas. O mundo pode ser de pedra, mas os sonhos são um colchão por cima dele e têm a teimosia e a ousadia de não desistir. Por mais que os afastemos, enxotemos como fazemos às moscas incómodas, os sonhos voltam sempre a assombrar-nos, a pousar-nos na cabeça, a picar-nos. Não é a dureza do mundo que vence, são estes insectos frágeis, sem ossos, sem corpo, a que chamamos sonhos, que acabam por fazer buracos no mundo, por o penetrar e vencer.
O da Herdade Nova era alto, era bonito, tinha os ombros largos e as coxas de um atleta de competição, as mãos fortes, os dedos compridos, o peito cheio. E, sobretudo, sabia colocar a voz. Um tom abaixo.
A minha única arma era a teimosia de um sonho.”
E vocês já tinham lido? Conhecem Afonso Cruz? Que outros livros dele me recomendam? Fico à espera das vossas recomendações, até à próxima e bom fim-de-semana.
“As alcaparras e as azeitonas têm de ser curadas antes de serem consumidas, assim como as pessoas, que são intragáveis se não forem arredondadas pela água do tempo.”
“— O menino — disse-me o meu pai enquanto fechava os olhos e punha sobre eles o polegar e o indicador — não me pode humilhar e morrer fora de casa. Que vergonha. Uma pessoa só morre tranquilamente se o fizer no leito onde dormiu todos os dias, onde treinou para a eternidade — (o meu pai achava que dormir era o treino diário para a morte). — É tão simples quanto isto. Aí, deitado na sua cama, é que tem de morrer, não é na rua como um vagabundo ou um cão.”
“— Nós achamos que ele é que anda aos esses, mas somos nós. Ele lá vai como uma estrada a direito e nós é que andamos pelas bermas, por atalhos, por outros caminhos e por vezes voltamos a encontrar aquela estrada, sempre a direito, que é o amor.
Pensei muito nisto e foi a tua mãe que, mais tarde, me forneceu a solução, mas ali, confuso e desfeito pela dor, a estranha serenidade sentenciosa com que a minha mãe falava contrastava com a ideia que se tinha dela, de mulher simples, leve, semitransparente, e, talvez por isso, as suas palavras tenham feito tanta pressão no meu peito, que de repente comecei a chorar. Soluçava violentamente ao seu lado, agarrando-lhe a mão enquanto ela, com a placidez que sempre tivera, fixava o tecto com um subtil sorriso no rosto, repetindo, vai a direito, o amor.”