Olá a todos, sejam bem-vindos. Então já forma à Feira do Livro de Lisboa?! Como estão essas compras?! Eu claramente estou a lutar pela vida neste aspecto, os ataques que tenho recebido no porta-aviões que é a minha carteira, em duas visitas à Feira, são duma robustez que até mete medo, mas o que se há de fazer com tantos livros a sorrirem assim para mim?! Eu tento, mas assim, não há Titanic que resista!
Bem, vamos lá então ao que interessa e ao livro de hoje. Já tinha lido muitas opiniões sobre este livro, sempre bastante positivas e sendo descrito como um grande livro. Realmente confirma-se, mas vamos lá com calma.
Temos então como última leitura do mês de Maio, “Se esta rua falasse” (título original: If Beale Street Could Talk), de James Baldwin, editado em Portugal pela Alfaguarda. Dizer que este livro foi editado originalmente em 1974 e que conta com uma adaptação ao cinema (em Portugal estreou em Fevereiro de 2019).
“Ainda que as pessoas quisessem fazer alguma coisa, o que poderiam elas fazer? Não posso dizer a ninguém neste autocarro: Olhe, o Fonny está metido em sarilhos, foi preso — já imaginaram o que me diria qualquer passageiro deste autocarro se soubesse, ouvido da minha boca, que amo alguém que está preso? —, e eu sei que ele nunca cometeu um crime e que é uma excelente pessoa, por favor, ajude-me a tirá-lo dali para fora. Já imaginaram o que diria qualquer passageiro deste autocarro? O que diriam vocês? Não posso dizer: Vou ter este bebé e também estou assustada, e não quero que aconteça alguma coisa ao pai do meu bebé, não o deixem morrer na prisão, por favor, oh, por favor! Não se pode dizer uma coisa destas. Ou seja, não se pode dizer nada. Ter um problema significa ficar sozinho. Sentamo-nos e olhamos pela janela, a pensar se ficaremos o resto da vida a ir e a vir neste autocarro. E, se for esse o caso, o que acontecerá ao bebé? O que acontecerá ao Fonny?”
Neste livro temos a história de um casal jovem afro-americano, Tish e Fonny em que este último se vê preso injustamente por um crime que não cometeu. Tish por seu lado, descobre que está grávida e decide então fazer tudo ao seu alcance para provar a inocência do seu homem, para que ele consiga estar livre para assistir ao nascimento da criança.
Com Harlem como cenário principal, mas com passagens por Porto Rico, toda a história se desenrola no clima de dificuldade, injustiça e racismo. Estas histórias mexem muito comigo e relatadas assim com esta clareza não dá para não sentir revolta sobre a forma como em tempos tratámos outros seres humanos. Sim, eu sei, ainda tratamos e realmente é uma pena, uma merda mesmo, que enquanto sociedade e em pleno século XXI ainda não tenhamos conseguido acabar com esta vergonha. O problema é que às vezes sinto, que já tivemos melhor a este respeito e que agora estamos a regredir e a voltar a extremar posições. Esperemos que ainda vire moda ser civilizado…
“— (…) Sei umas coisas do agente Bell, que é um racista e um mentiroso… Já lho disse na cara, pelo que podem estar à vontade se me quiserem citar, a alguém, em qualquer altura… e também sei coisas do procurador que tomou em mãos este caso, que é ainda pior. Agora, tu e o Fonny insistem que estavam juntos, no quarto na rua Bank, com um velho amigo, Daniel Carty. O teu testemunho, como podem imaginar, não conta para nada, e o Daniel Carty acabou de ser preso pelo gabinete do procurador e está detido, incomunicável. Ainda não fui autorizado a falar com ele. — Levantou-se e caminhou até à janela. — O que eles estão a fazer é verdadeiramente contra a lei, mas a verdade é que o Daniel tem cadastro, como sabem. E eles, obviamente, tencionam convencê-lo a alterar o testemunho. E, eu não sei isto, mas era capaz de apostar que é essa a razão por que a senhora Rogers desapareceu. — Voltou ao seu lugar atrás da secretária e sentou-se. — Por isso, estão a ver? — Olhou para mim. — Vou tentar simplificar as coisas ao máximo. Mas vai continuar a ser muito difícil.”
Política à parte, este livro é um hino à boa escrita e à discrição de uma realidade que só pode ser relatada desta forma por alguém que sabe do que fala, não leu num jornal, não ouviu dizer, estava lá, sentiu na pele todas estas adversidades, era a realidade que o rodeava e ele “só” se limitou a relatá-la… como só os génios conseguem!
“Nem o amor nem o terror nos tornam cegos: é a indiferença que nos cega.”
Foram umas belas 5 estrelas no Goodreads porque não há nada nesta história que pudesse ser contado de outra forma, com mais clareza, nem com mais certeza do que aquela com que James Baldwin fez. Livro espectacular e essencial para se perceber aquilo que o racismo e a estupidez humana fazem sofrer! E vocês já leram?! Gostaram?! Obrigado pela visita e até à próxima!
“— (…) Mas sei algumas coisas sobre o sofrimento; se ajudar. Sei que acaba. Não te vou estar a mentir, dizendo que acaba sempre bem. Às vezes acaba em mal. Podes sofrer tanto que acabas num lugar em que nem sequer podes sofrer mais: e isso é o pior.”
“— Olhem. Disse para não se preocuparem com os vizinhos. Mas tenham cuidado com os polícias. Eles matam.
Um dos aspectos mais terríveis e misteriosos da vida é este: só prestamos atenção a um aviso em retrospectiva. Ou seja: demasiado tarde.”
“— Tirá-lo de lá. É isso que temos de fazer. Os dois sabemos que ele não devia estar lá. E aqueles cabrões mentirosos também sabem. — Ele levanta-se. Está a tremer. A cozinha ficou silenciosa. — Ouve. Eu percebo o que estás a dizer. Estás a dizer que eles têm a faca e o queijo na mão. Pronto. Mas aquele rapaz é carne da nossa carne, pá: carne da nossa carne. Não sei como é que vamos fazer isto. Só sei que temos de o fazer. Sei que não tens medo por ti, e Deus sabe que não tenho medo por mim. Aquele rapaz tem de sair de lá. Ponto final. E nós temos de o tirar de lá. Ponto final. E a primeira coisa que temos de fazer, pá, é não perdermos a calma. Não podemos deixar que aqueles sacanas filhos da puta, que aqueles coninhas branquelas consigam prolongar esta merda. — Ele senta-se, bebe mais cerveja. — Há demasiado tempo que nos andam a matar os filhos.”