Hoje vamos falar do livro que ironicamente (ou talvez não) mais anda na boca e nas redes sociais dos leitores. Falemos então de “Vox” de Christina Dalcher, editado em Portugal pela Topseller. Este foi o livro escolhido para o mês de Fevereiro no Net Book Club. Depois de ler “O Poder” de Naomi Alderman (que também foi uma leitura do Net Book Club, mas que eu já tinha lido antes), uma distopia também, mas que dava um poder ás mulheres, este “Vox” foca-se no extremo oposto.
“E se cada mulher só tivesse direito a 100 palavras por dia?”. É assim que começa a aventura por esta distopia, com uma premissa que parece bastante contraditória com os tempos actuais (talvez não tanto os mais actuais, mas um pouco antes das últimas eleições norte-americanas) e em que felizmente, mas ainda longe do ideal, as mulheres são uma voz bem mais activa em todos os campos das sociedades modernas.
“Às vezes, escrevo letras invisíveis na palma da mão. Enquanto o Patrick e os rapazes falam com a língua, eu falo com os dedos. Grito, lamento e amaldiçoo tudo o que tem que ver com — nas palavras de Patrick — «o modo como as coisas eram».
Agora, as coisas são assim: são-nos atribuídas 100 palavras por dia. Os meus livros, até os velhos exemplares de Julia Child e — que ironia! — a edição de Better Homes and Gardens de folhas encarquilhadas e com capa de xadrez vermelho e branco, que uma amiga decidiu que seria uma bela piada como prenda de casamento, estão trancados em armários para que a Sonia não lhes chegue. O que significa que eu também não os posso ler. O Patrick carrega as chaves como uma âncora e, por vezes, acho que é o peso desse fardo que o faz parecer mais velho.”
Eu sinceramente nem sei muito bem que história é essa de ser feminista, não procuro perceber estas definições que muitas vezes extravasam em pontos de vista extremados e que ficam bem longe, acho eu, da ideia original. Se ser feminista é querer igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, então é provável que eu seja feminista, não sei.
É nesse contexto que entra a nossa história distópica (pelo menos espero que assim continue). Estados Unidos da América, o país onde os sonhos estão lá para todos, elegem livremente para os representar alguém que decreta que as mulheres não podem dizer mais do que 100 palavras por dia, incluindo crianças (Realidade + Esteróides = Coincidências?!).
“— Posso ajudá-la, minha senhora? — perguntou o funcionário quando me aproximei dele com a certidão de nascimento da Sonia.
— Pode, se tratar de pedidos de passaporte. — Fiz passar o formulário pela ranhura na barreira de acrílico.
O funcionário, que parecia ter uns 19 anos, pegou-lhe e indicou-me que esperasse.
— Oh — disse, voltando para o guiché. — Preciso do seu passaporte. Só para fazer uma cópia.
O passaporte da Sonia demoraria umas semanas, disseram-me. O que não me foi dito foi que o meu passaporte tinha sido invalidado.
Descobri muito mais tarde. E a Sonia nunca recebeu o seu.
No início, algumas pessoas conseguiram sair. Algumas atravessaram a fronteira com o Canadá. Outras partiram em barcos para Cuba, México, para as ilhas. As autoridades não tardaram a montar postos de controlo, e a muralha que separava o sul da Califórnia, o Arizona, o Novo México e o Texas do México já tinha sido construída e o êxodo não demorou a ser travado.
«Não podemos permitir que os nossos cidadãos, as nossas famílias, as nossas mães e pais fujam» disse o presidente num dos seus primeiros discursos.”
A partir daqui acompanhamos a vida de Jean McClellan que nunca acreditou que esta ideia absurda e o Movimento Puro conseguissem por em vigor uma mudança na sociedade americana a uma escala tão grande quanto idiota. Todas as mulheres andam com um contador de palavras no pulso onde vão vendo quantas palavras já gastaram no dia e vão gerindo aquilo que podem dizer.
Adoro escritores que têm a imaginação de criar um mundo tão alternativo e que conseguem torná-lo coerente do princípio ao fim. Os constrangimentos em que as mulheres se vêm envolvidas num mundo assim são de doidos, mas brilhantemente coerentes numa realidade daquelas.
“O Steven não desistiu. Abriu o livro daquela maldita disciplina avançada, Introdução á Maluquice Religiosa ou lá como lhe chamavam, e começou a ler.
— «O caminho da mulher não é a urna eleitoral, mas tem uma esfera própria, de enorme responsabilidade e importância. É a guardiã do lar nomeada por Deus… Deverá perceber de forma mais integral que a sua posição como mulher, mãe e anjo do lar é a posição mais sagrada, de maior responsabilidade, atribuída a mortais, tornando-a uma rainha. E deverá ignorar toda a ambição por algo mais elevado, pois nada poderá ser mais elevado para os mortais.» Do reverendo John Milton Williams. Vês? És como uma rainha.”
Sendo assim, Jean acaba por ser a voz, a cara e o corpo de um género oprimido e que tem que lidar com problemas familiares, pessoais e, num mundo onde as mulheres não trabalham, até profissionais quando se vê contratada de por um governo que odeia a fim de concluir um trabalho que tinha deixado a meio antes de ser obrigada a virar uma dona de casa.
É um livro muito bom e que recomendo a todos, até para pensarmos naquilo que queremos que seja o nosso futuro em relação á igualdade de género. A mim às vezes assustam-me aquelas pessoas que olham para uma coisa estúpida e pensam: ora aqui está uma bela ideia para aplicar na realidade! (sei lá, como construir um muro na fronteira com o México, para acabar com a imigração ilegal e o tráfico de droga…). Sim, a ideia de limitar as mulheres a 100 palavras por dia é estúpida, mas deu um grande livro, ponto final. Agora é favor não tentar adaptar isto para a realidade (se adaptarem para o cinema é outra conversa)!
“Quando a Sonia começou o primeiro ano, no último outono, a escola abriu as portas aos pais. O Patrick e eu fomos, juntamente com todos os outros. Não vi o aviso que foi enviado aos pais (ou aos avôs, no caso de a rapariga ter duas mamãs). É claro que já não existem famílias com duas mamãs ou dois papás. Todos os filhos de casais do mesmo sexo foram enviados para viver com o parente masculino mais próximo, um tio, um avô, um irmão mais velho, até os pais biológicos voltarem a casar da forma certa. Curiosamente, com toda a conversa sobre a terapia de conversão e sobre cura da homossexualidade, nunca ninguém pensou na forma infalível de pôr os gays na linha: tirar-lhes os filhos.”
E vocês, já leram? O que pensam desta realidade? Acham que o futuro nos trará uma realidade semelhante a esta ou mais próxima da igualdade entre homens e mulheres? Comentem, tenham um bom fim-de-semana recheado de boas leituras! Até à próxima.
“— Vê? — diz. — É por isso que os velhos costumes não resultavam. Há sempre alguma coisa. Há sempre algum miúdo doente, uma peça na escola, dores menstruais ou licença de maternidade. Há sempre um problema. — Abro a boca, mas não para falar. É apenas uma reação de incredulidade. O Morgan não acabou. Pega numa caneta e começa a brandir o ar com ela. — Precisa de meter isso na cabeça, Jean. As mulheres não são fiáveis. O sistema não funciona como funcionava. Veja os anos 50. Tudo era perfeito. Todos tinham uma bela casa, um carro na garagem e comida na mesa. E as coisas funcionavam com eficiência! Não precisávamos de mulheres na força laboral. Verá, quando superar toda essa raiva. Verá que as coisas são melhores assim.”
“A Jackie também se ofereceu para trabalhar como coordenadora de campanha. Na sua última carta, falou-me das eleições intercalares, do regresso do Congresso ao normal, talvez melhor ainda do que o normal, com tantas mulheres que se candidataram. «Imagina, Jeanie», escreveu. «Vinte e cinco por cento do Senado e da Câmara. Vinte e cinco! Devias voltar para te candidatares.»
«Talvez no ano que vêm», escrevi na resposta. E fui sincera.
Mas, por enquanto, a Jackie tem o meu apoio financeiro e moral. Não estou pronta para participar na política, ainda não. Os rapazes adoram o sol e o ar de Itália, a segunda língua da Sonia vai a caminho de se tornar tão expressiva como a primeira e todos estão entusiasmados com o bebé que vem a caminho.
Além disso, gosto de olhar para as mulheres daqui. Falam com as mãos, com os corpos e com as almas. E cantam.”